Guião 8 final
Os Lusíadas – é um “canto que molhado vem do naufrágio”. Não se trata apenas de uma imagem poética. Há 450 anos, na foz do rio Mecon, no actual Vietnam, a nau em que Camões ia embarcado naufragou e ele quase
perdeu a vida. O mundo teria ficado muito mais pobre sem o seu “canto molhado”. E os portugueses teriam perdido a obra fundadora da consciência de si próprios.
Camões tem sido usado, ao longo dos séculos, para simbolizar as mais contraditórias ideologias: a fé, o império,
a República, a ditadura de Salazar, as guerras coloniais, e agora até a nossa actual democracia, o que sempre é melhor. Chegou-se mesmo a associar Camões a um “dia da raça”, como se houvesse tal coisa como uma raça
portuguesa, como se nós não fossemos uma salutar mistura de muitas raças. Mas não é por tudo isso que Camões é o maior dos portugueses.
O Camões que é o maior dos portugueses não é o Camões das comemorações, é o Camões que excede todas
as ideologias. Camões representa simultaneamente o nosso passado, o nosso presente e a nossa esperança no futuro. Por isso é o melhor de todos nós.
Camões foi o primeiro poeta europeu com experiência directa de nações e de culturas tão diferentes da nossa quanto eram então as da África, da Índia, da Indochina. Celebrou o encontro do Brasil com o ocidente. Depois
das viagens pioneiras dos portugueses, tinha deixado de haver apenas Europa na consciência europeia. Ele foi o pioneiro da moderna consciência universalista.
Hoje em dia fala-se em “globalização”, muitas vezes como uma forma disfarçada de domínio dos ricos sobre os
pobres. Na obra de Camões há uma concepção globalista do mundo baseada no encontro entre culturas diferenças.
Camões tornou a língua portuguesa na primeira língua europeia capaz de dar expressão à diversidade. A “língua de Camões” é a nossa actual língua portuguesa sem donos nacionais, porque passou a ter tantos donos quantos
são os que nela falam e escrevem em todos os continentes
A vida e a obra de Camões são indissociáveis. O que, acima de tudo, ele afirmou através da sua obra e da sua vida foi o direito da humanidade à felicidade na terra. “Contentei-me com pouco”, diz ele num poema, “só por ver
que cousa era viver ledo” – que coisa era ser feliz. Esse é o mundo que todos nós ainda procuramos.
É dessa procura que ele nos dá conta na sua poesia lírica e que simboliza n’Os Lusíadas. Ao tempo, o direito da humanidade a ser feliz era um conceito revolucionário.
Hoje em dia é um direito universalmente consagrado. Mesmo quando traído.
Camões não foi um intelectual de gabinete. Como disse um poeta inglês, “de todos os poetas é o único que tem o direito de olhar um soldado raso face a face”. E, como ele próprio disse, viu mágoas, viu misérias, viu desterros.
Pouco se sabe da sua vida, há muita fantasia e especulação. Mas alguma coisa se sabe.
É provável que Luiz Vaz de Camões tenha nascido em Lisboa, em 1524 ou 1525, numa precária pequena aristocracia, a classe dos escudeiros, que tinha de fazer pela vida ao serviço das grandes casas senhoriais como,
no caso dele, teria sido a do Conde de Linhares. Do lado da mãe, Ana Vaz de Macedo, seria no entanto aparentado com os “nobres Gamas do Algarve”, ou seja, a família de Vasco da Gama. Mas que Camões era
pobre é acentuado em vários testemunhos. Por outro lado, a sua extraordinária cultura e erudição dão credibilidade à presunção de que tenha estudado na Universidade de Coimbra.
Quanto ao mais, sabe-se que viveu algum tempo em Lisboa na década de 1540. E há várias composições suas endereçadas a damas da Corte que sugerem ter tido acesso aos galantes “serões do Paço” nesse período do
Camões não era uma presença confortável. Diogo do Couto caracteriza-o como “um homem de naturaleza
terrível”; Pedro de Mariz descreve-o como “grande gastador, liberal e magnífico” e diz que “não lhe duravam os bens materiais mais que enquanto não via ocasião de os despender a seu bel-prazer”.
A descrição mais completa é de Manuel Severim de Faria: “Foi Luís de Camões de meã estatura, grosso e cheio
de rosto, e tinha o nariz comprido, levantado no meio e grosso na ponta. Afeiava-o notavelmente a falta do olho direito sendo mancebo. Teve o cabelo tão louro que tirava a açafronado. Ainda que não era gracioso na
aparência, era na conversação muito fácil, alegre e dizidor, [.] posto que já sobre a idade deu algum tanto em melancólico. Nunca casou, nem teve geração.”
Tudo indica que, entre 1549 e 1551, tenha servido na praça militar de Ceuta, onde jovens portugueses do seu
tempo costumavam ser iniciados nas experiências da guerra. E teria sido em Ceuta que, num recontro com os
mouros, foi ferido e que perdeu o olho direito.
Ficou consideravelmente “afeiado” por esse ferimento de guerra, pela “fúria rara de Marte", como diz num poema.
Regressado a Lisboa, houve mulheres que lhe chamavam “o diabo” e “o cara sem olhos”. Crueldade feminina ou
malandrice? Seja como for, entrou no que é geralmente considerado uma fase escandalosa da sua vida.
19 20. OFF
Lisboa era então a cidade mais excitante – e mais perigosa – do mundo, o grande porto onde convergiam todas
as raças e todas as culturas, o ponto de encontro universal entre todos os vícios e todas as virtudes, um vasto
mercado para o comércio do bem e do mal. Na tecnologia, na observação científica, no pensamento e nas artes,
Portugal estava na vanguarda da Europa. Os marinheiros contavam as suas inverosímeis experiências com
gentes e em mundos até então desconhecidos pelos outros povos europeus. Presume-se que cerca de 10% da
população lisboeta era negra. Judeus e mouros traficavam lado a lado com cristãos vindos de toda a Europa. As
religiões coexistiam. A prostituição masculina rivalizava com a feminina. A “peçonha branca” – a droga – fazia que pessoas andassem sonhando ao meio-dia pelas ruas da cidade. Camões teria considerado a nossa Lisboa de hoje – ou Londres, ou
Paris, ou Nova Iorque – uma cidade pouco cosmopolita e demasiadamente bem comportada.
Mas a repressão não se faria tardar. O que agravou a brutalidade. Se havia imoralidade nas nossas ruas, pior
imoralidade foi quando se estabeleceu a Inquisição e o Estado passou a queimar gente viva como espectáculo
Camões tinha cerca de dezoito anos quando se executou em Portugal o primeiro Auto de Fé. Os judeus convertidos à força eram queimados por continuarem a pensar de modo diferente dos cristãos. Mas os cristãos
também tinham ficado proibidos de pensar.
Camões recusou-se a não pensar, nunca aceitou pensar e agir como o poder repressivo exigia que os
portugueses pensassem e agissem. O seu notório mau comportamento social representa, acima de tudo, uma afirmação de liberdade. Portou-se mal porque a sociedade se portava pior.
Mas na verdade não foi tão mau como isso.
O seu problema, como diz numa carta, era que não gostava de mostrar as “solas dos pés”, de virar as costas e fugir do perigo. E nisso seria tanto o homem de acção – o soldado – quanto o poeta.
Chegaram até nós algumas cartas de Camões que fazem um retrato vivíssimo da sociedade lisboeta desse
tempo, do que hoje em dia chamaríamos a sua vida boémia. Não é o Camões das estátuas, das comemorações e da coroa de louros. É o Camões que a pudicícia oficial tem procurado neutralizar. Mas foi aí, nessa Lisboa
devota e devassa, que ele aprendeu a observar os mais diversos comportamentos sociais.
Gostava genuinamente de mulheres, e por isso, ao contrário de tantos homens que supostamente gostam de
mulheres, desde cedo aprendeu que as mulheres têm uma identidade própria e não são apenas a projecção do
Por essas e por outras satiriza os supostos sedutores masculinos, os narcisos do amor mais enamorados de si
próprios do que das mulheres que julgavam seduzir: “Encostados sobre as espadas, os chapéus até aos olhos e
a parvoíce até aos artelhos, cabeça sobre os ombros, capa curta, pernas compridas”. Ou então os melancólicos
que, “no andar, carregam as pernas para fora, torcem os sapatos para dentro”, trazem sempre um livro de
poemas na manga, “falam pouco e tudo saudades, enfadonhos na conversação pelo que cumpre à gravidade do
amor”. São, é claro, uns chatos predestinados a serem explorados pelas alcoviteiras.
Se havia homens promíscuos, também havia mulheres que o não eram menos, como por exemplo “uma dama
tão dama que, pelo ser de muitos, se a um mostra bom rosto, porque lhe quer bem, aos outros não mostra ruim,
E entre as mulheres, havia de tudo. As beatas que não perdiam a sua missinha diária, as casadas que se
sentiam muito aliviadas por terem os maridos embarcados, e até umas respeitabilíssimas senhoras aparentemente virtuosas, modestas, penitentes e até (os tempos não mudaram) ecologicamente correctas
vegetarianas "que não comem cousa que padeça morte": grandes chapéus e hábitos de sarja, contas na mão e o
cu ladrão, e haja eu perdão, porque debaixo lhes achareis mantéus debruados, gravins lavrados, jubões de holanda, alvos e justos.”
Pois é, Camões teve amplas oportunidades de avaliar a qualidade da roupa interior dessas senhoras tão
excitantes que até faziam que as naus parecessem chegar à Índia não em seis meses mas logo ali, sem mais demoras.
Bom, mas como estes versos demonstram, ele também andava a enganar cada uma delas com as outras duas…
E havia ainda, é claro, as “damas de aluguer”. Pelo que se depreende do que diz o nosso poeta, essas “ninfas de
água doce” (“que chiam como pucarinho novo com água”) eram raparigas muito mais cultas e artísticas do que se
poderia imaginar. Eram uma espécie de gueixas lisboetas, que entretinham os clientes cantando e dançando
melhor do que os artistas que “El-Rei mandou chamar para a Corte”. E que também sabiam dizer versos, como
Camões vai nostalgicamente recordar numa carta escrita de Goa em que se queixa que as prostitutas locais não
percebiam nada de poesia e que assim não havia “quentura” que aguentasse. (Donde se depreende que os
versos de amor contemplativo dos grande poetas, como Petrarca, funcionavam como uma espécie de viagra nos
Camões refere-se com uma estima muito especial a um grupo de raparigas que, depois da patroa do bordel onde
trabalhavam ter sido assassinada pelo marido ciumento (“grande perda para o povo”) se organizaram em auto-
gestão, com merecido sucesso, numa "nova torre de Babel" onde se vêem "Mouros, Judeus, Castelhanos,
Leoneses, frades, clérigos, solteiros, casado, moços, velhos".
A essa cosmopolita misturada deu ele o nome irónico de “O Mal Cozinhado” porque, como num grande restaurante popular, “sempre achareis nele que comer, quer bem quer mal”.
O povo divertia-se, mas a corrupção e a violência eram consideráveis. Camões menciona, por exemplo, um
senhor importante que “paga soldo aos maiores matadores desta terra” e que consegue assegurar a conivência das autoridades não só subornando funcionários do Tesouro mas também propiciando-lhes os favores sexuais
da irmã. Nessa mesma carta, avisa o amigo a quem a dirige que “é passado [.] um mandado para prenderem a uns dezoito de nós” por causa do espancamento de um fidalgo “em noite de São João”.
Não foi preso dessa vez mas foi pouco depois, noutro dia do calendário religioso – o “dia de Corpo de Cristo” – quando, no meio de uma desordem, feriu com a espada um funcionário do Paço.
O funcionário por sorte não morreu, devem-se ter movido algumas influências, e uma “Carta de Perdão” datada
de 7 de Março de 1553 libertou-o da cadeia do Tronco declarando que Luís de Camões, “mancebo e pobre”, é autorizado por El-Rei D. João III a ir em seu serviço para a Índia nesse mesmo ano.
37. OFF/ON
Esteve dezassete anos sem voltar a Portugal. De algum modo teve sorte – e nós também – por ter saído de
Portugal antes de os poderes da repressão inquisitorial terem transformado o que havia sido uma sociedade
culturalmente aberta, se bem que perigosa, numa sociedade crescentemente fechada e sujeita a um fanatismo
religioso ainda mais perigoso. Camões levou consigo um sentimento de liberdade que começava a desaparecer
em Portugal. Tinha aprendido a ver – o “ver claramente visto” que manifesta n’Os Lusíadas, “e tudo sem mentir,
puras verdades”. Por isso ele é mais moderno – mais do nosso tempo – do que do tempo dos seus contemporâneos que deixou atrás.
O amor está no centro da sua visão do mundo. Como escreveu num poema, "Não canse o cego Amor de me guiar a parte donde não saiba tornar-me".
Poucos homens, no seu ou no nosso tempo, valorizaram tanto o direito da mulher à sua própria sexualidade como Camões.
Até escreveu vários poemas em voz feminina em que ridiculariza a parvoíce dos homens que insistem em preferir a casta imagem estereotipada das mulheres assexuadas à realidade de uma sexualidade por elas próprias
assumida ou, como ironiza dando voz a uma delas, em preferir a roupa que a oculta ao corpo que ela teria preferido desnudar:
E depois a frustrada rapariga acrescenta: ando eu cega e louca por ti e tu só queres o meu chapéu!
Dentro das convenções poéticas que reflectiam as convenções morais do seu tempo, só devia haver direito a um
amor personificado numa única mulher cuja identidade seria apenas a identidade do homem que nela se
incorporasse. Mas Camões demonstra exactamente o contrário: que imaginar o amor não é amar, porque o
verdadeiro amor pressupõe o reconhecimento de quem se ama como alguém que não é quem nós somos.
Por isso várias vezes afirma que não só homens e mulheres diferentes podem amar mulheres e homens
diferentes mas que há diversos níveis do amor que não são incompatíveis uns com os outros. A própria compreensão do que é o amor depende da experiência vivida por cada um.
Ó vós que Amor obriga a ser suspeitos A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos, Verdades puras são, e não defeitos. E sabei que, segundo o amor tiverdes,
41. OFF / ON
Camões foi também o primeiro poeta europeu que celebrou a dignidade de outras raças, que soube amar mulheres de outras raças em termos de igualdade. Celebra, por exemplo, a beleza diferente de uma sua amante
negra chamada Bárbara que "bem parece estranha, mas bárbara não". E uma das mulheres que mais amou também não era europeia. Seria talvez chinesa, não se sabe. Sabe-se apenas que lhe chamou Dinamene – o
nome poético de uma ninfa do Tejo – assim ao mesmo tempo colocando-a ao nível mais alto e celebrando nela a sua própria tradição cultural, de igual para igual. Supõe-se que essa mulher oriental – Dinamene – estaria com
Camões no naufrágio em que ele quase perdeu a vida, em que nós quase perdemos Os Lusíadas, e em que ele perdeu a sua amada “ninfa” para sempre.
Tornou-se na “ninfa” naufragada a quem vai dirigir alguns dos seus poemas mais sentidos, talvez a “alma minha
gentil que te partiste”, talvez aquela cuja morte o levou a escrever o que é dos versos mais belos e mais terríveis
que naquilo em que pus tamanho amor, não vi senão desgosto e desamor,
e morte, enfim, que mais não pode ser. Pois vida me não farta de viver, pois já vi que não mata grande dor,
eu tudo posso ver… Já perdi o que perder o medo me ensinou ON “Pois já vi que não mata grande dor”. Terrível constatação, só possível a quem soube amar e a quem a morte
Perante a morte do amor o mundo deixa de fazer sentido e parece ser apenas um esquecimento de Deus
O reconhecimento do valor de outras raças e culturas não se limitou, para Camões, às relações entre os sexos e
aos amores que teve no Oriente. Chegado a Goa nos primeiros dias de Setembro de 1553, logo em Novembro
teve de participar numa incursão militar na costa malabar. Dessa experiência faz registo, com veemente
sarcasmo anti-bélico, num poema em que contrasta a vaidosa arrogância dos conquistadores massivamente
armados – “nós” – com a simplicidade das populações locais que não tinham mais para se defenderem do que
arcos e flechas – “os próprios” daquela terra. O que Camões descreve nada tem de heróico: é só ganância,
com toda a gente d’armas que se achara,
e com pouco trabalho destruimos a gente no curvo arco exercitada.
Esse longo poema autobiográfico contém muito do que iria ser a matéria épica d’Os Lusíadas, incluindo, por exemplo, a descrição da tempestade marítima que o poeta confrontou e ‘emprestou’ a Gama para a transformar
na metamorfose de Adamastor numa rocha gigantesca.
Vasco da Gama, fez uma viagem comparativamente calma para a Índia. Como sempre, Camões terá usado a
sua experiência pessoal para falar das experiências colectivas que representam a nossa identidade nacional. O poema é sobretudo um debate entre a memória e o esquecimento, como também os Lusíadas. A memória é a
poesia, as letras, a linguagem. O esquecimento é a guerra, a destruição, a morte. Por isso Camões irá dizer n’Os Lusíadas, que sem ele, sem um Camões, sem a sua poesia, os feitos de um Vasco da Gama e de todos os
outros “barões assinalados”, por mais heróicos que tivessem sido, não teriam nenhum significado porque ficariam devotados ao esquecimento, teriam ficado sujeitos à “lei da morte”. E a memória, para Camões, é sempre
O amor é o supremo poder humano e divino sobre o qual Camões constroi a nobre arquitetura d’Os Lusíadas. É por isso - ainda mais do que por celebrar a viagem que abriu as portas do mundo e por glorificar a História da
nação fundadora da modernidade – que este é o maior poema épico do renascimento europeu, em qualquer língua.
Em Espanha, onde duas traduções foram feitas ainda em vida de Camões, desde logo o reconheceram e Cervantes presta-lhe homenagem nessa outra grande obra que é o Dom Quixote. E também na Itália, onde
Tasso, ele próprio um notável poeta épico, concede a Camões a primazia num poema em que o declara “o príncipe dos poetas”.
E nós, os portugueses? Honrosas excepções àparte, fizemos tudo para tornar o nosso Camões na sensaboria
das comemorações oficiais; algumas das passagens mais sublimes do poema foram expurgadas como imorais nas edições escolares do salazarismo. E ainda hoje nas nossas escolas e universidades se consegue estragar o
puro prazer de leitura dessa obra-prima da literatura mundial. Obrigámos os meninos e as meninas a dividir as orações ali de castigo.
Como sabe mesmo quem não tenha lido o poema, Os Lusíadas celebra a viagem pioneira de Vasco da Gama à Índia e, através dela, a História de Portugal até ao seu tempo. Se D. Afonso Henriques fundou o reino de Portugal
e D. João I o refundou, Camões foi o fundador da consciência nacional dos portugueses. Um país sem consciência própria é como um corpo sem vida.
Mas Camões fez ainda mais: fingindo tratar-se de mera decoração poética, para enganar a censura inquisitorial, inventou uma trama em que trouxe as divindades mitológicas da épica clássica para o cristianismo. E, através
delas, redimencionou o cristianismo em termos do que o cristianismo deveria ser – do que Portugal deveria ser -
mas não estava a ser. Para Camões o cristianismo era a religião do amor e não do ódio, não era a religião da
Ao nível do enredo mitológico que o poema sobrepõe aos factos históricos, Vénus, a deusa do amor, favorece os
portugueses e guia-os até à Índia. Baco temendo que os humanos usurpassem o poder dos Deuses, procura em
vão impedir o seu progresso. Mas chegar à Índia não era só o que se pretendia, ainda faltava outra viagem de
descoberta. Vénus fica insatisfeita, acha que os seus portugueses mereciam mais. Decide assim criar uma ilha
mágica que tem a forma do seu corpo e que vai singrando paralela às naus de regresso para a “pátria amada”
até que, subitamente vista pelos navegantes, fica fixa e pronta para ser “descoberta”.
"Três formosos outeiros se mostravam…"
Vénus tinha povoado a ilha com as suas “ninfas amorosas” e o que os navegantes nela descobrem é o amor.
Não apenas o que deveria ser o amor cristão - o amor divino que redime a humanidade - mas também o amor
humano que inclui uma sexualidade capaz de levar a humanidade à mais sublime iluminação espiritual. Nesta
ilha – na Ilha do Amor – todos os opostos podem ser reconciliados, todos os conflitos resolvidos, não há
impossibilidades, não há divisão entre a carne e o espírito.
Essa é a verdadeira descoberta que Camões desejava que os portugueses fizessem.
53. OFF
O Lusíadas não é portanto apenas um poema celebratório dos feitos dos portugueses.
A própria celebração não deixa de acentuar os sacrifícios e o sofrimento dos que partiram e dos que ficaram.
Como o poeta diz pela voz de Gama na cena prodigiosa que precede a partida das naus, os heróis entraram nas
E nós coa virtuosa companhia De mil Religiosos diligentes,
Em procissão solene a Deus orando, Para os batéis viemos caminhando.
Por perdidos as gentes nos julgavam; As mulheres c’um choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam; Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam A desesperarão, e frio medo
Qual vai dizendo: —" Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro, Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro, A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!" — Nestas e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade, Os velhos e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade. Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade; A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam. Nós outros sem a vista alevantarmos Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa, A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
Mas o poema é também uma crítica e uma condenação. Camões critica a ganância e a corrupção, condena a
opressão de outros povos e a escravatura.
Condena a perversa castidade de Dom Sebastião que, “por fugir da bela forma humana”, estava a ameaçar a independência do Reino. Critica, em suma, a nação que tinha caído “numa austera, apagada e vil tristeza”.
Camões tinha ido para Goa para saír da prisão em Lisboa. Mas foi de novo preso em Goa – há quem julgue que
mais do que uma vez – por motivos que poderiam ter incluído uma atitude crítica ao poder e à inquisição. Ao contrário do que tem sido afirmado, não há prova de que tenha sido preso por corrupção depois de uma estadia
prolongada em Macau, onde aliás tudo indica que nunca esteve. A famosa “gruta de Camões” é uma fantasia. O que não é fantasia é que foi encontrado a viver na maior miséria em Moçambique. Alguns amigos cotizaram-se,
pagaram-lhe as dívidas e a passagem de regresso a Lisboa, onde chegou em Abril de 1570, após dezassete anos de ausência. Os Lusíadas foi publicado em 1572 e D. Sebastião concedeu uma pequena pensão de 15.000
reais (que não era muito mas também não era pouco) ao soldado que o tinha servido na Índia. Não ao poeta. D. Sebastião não tinha aprendido muito com o poeta.
Quando Filipe II de Espanha entrou em Lisboa em 1580 para assumir a coroa como rei de Portugal,
perguntaram-lhe se havia algum português ilustre que ele quisesse conhecer. Filipe – filho de portuguesa e de alemão – respondeu que sim, que queria conhecer o mais ilustre dos portugueses: o poeta Luís de Camões.
Camões tinha acabado de morrer, vitimado pela peste que então assolava o reino, e nem se sabia para que vala
Isto também significa que os ossos que estão no mosteiro dos Jerónimos como sendo de Camões certamente não são dele. Mas pouco importa, como o “soldado desconhecido”, representa-nos a todos. Filipe II determinou
que a tença que anteriormente havia sido atribuída ao soldado passasse a ser paga na íntegra à mãe do poeta. Só por isso sabemos que ela ainda estava viva e que Luiz Vaz de Camões morreu em 10 de Junho de 1580.
Não mais, Canção, não mais; que irei falando,
sem o sentir, mil anos. E se acaso te culparem de larga e de pesada,
não pode ser (lhe dize) limitada a água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando co gosto do louvor, mas explicando
puras verdades já por mim passadas. Oxalá foram fábulas sonhadas!
D. Sebastião não aprendeu muito com Camões e por isso não sabia que ele era já então o maior dos
portugueses. E nós, os portugueses de agora, já sabemos?
29th Annual Scientific Meeting of the American Pain Society, Baltimore, MD, May 6–8, 2010Gabapentin Enacarbil Improves Pain Associated with Restless LegsSyndrome Daniel O. Lee,1 Ronald B. Ziman,2 A. Thomas Perkins,3 J. Steven Poceta,4 Arthur S. Walters,5 Ronald W. Barrett6 1Sleep Disorders Center, East Carolina Neurology, Inc., Greenville, NC; 2Northridge Neurological Center, Northridge, CA