Relações afetivo-sexuais comercializadas e sujeitos políticos em busca de reconstrução da identidade
Ser ou ser outro: desafios da alteridade na cultura
Federação Brasileira de Psicanálise – FEBRAPSI
Resumo: O presente texto propõe uma reflexão sobre as relações afetivo-sexuais
comercializadas bem como sobre representações sociais e processos psíquicos em torno
da compra e venda de serviços sexuais. O contexto de violência física, sexual, psíquica e
moral vivenciado pelos/as profissionais do sexo favorece a sua constituição como sujeito
político em busca de cidadania e inclusão social, no caso em questão, na sociedade
Palavras chaves: sexualidade, prostituição, serviços sexuais, profissionais do
Conceituação e delimitação
As relações afetivo-sexuais comercializadas são relações de compra e venda de
serviços sexuais envolvendo pelo menos duas partes, profissionais do sexo e clientes.
Estamos abordando essas relações enquanto envolvimento de pessoas adultas, por
decisão própria premida por motivações psíquicas e necessidades e/ou demandas
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financeiras, sexuais, afetivas, existenciais. A questão considerada nestes termos exclui
exploração/abuso sexual de crianças e adolescentes e o tráfico de mulheres para o
A comercialização individual de serviços sexuais não é criminalizada nem
regulamentada na sociedade brasileira. O que é considerado crime pelo Código Penal é a
exploração da prostituição por terceiros, prática esta, no entanto, que é comum e subsiste
impunemente. A inexistência de uma lei social que regulamente a compra e a venda de
serviços sexuais alude a um território sem limites, onde vigora a “lei do mais forte”. Nesse
campo as pulsões libidinais e agressivas tem livre curso, não havendo a quem recorrer
(Estado, Justiça, Polícia) em situações de descumprimento de acordos entre as partes e
de violências praticadas e sofridas corriqueiramente.
Estas relações se diferenciam de duas outras modalidades de relações afetivo-
sexuais: as relações forçadas (estupro e abuso sexual), práticas perversas e
criminalizadas na maioria das sociedades; e as relações afetivo-sexuais não
comercializadas, em que os parceiros ocupam iguais posições, ambos amantes,
namorados, cônjuges, consideradas como o padrão de relacionamento erótico-amoroso
Todas essas modalidades de relações são fortemente marcadas pelas condições
de gênero, étnica e sócio-econômica. No que tange às relações comercializadas, e em
termos típicos, constata-se que as mulheres vendem serviços sexuais para os homens; e
os homens compram serviços sexuais de mulheres e de homens. A negociação de
práticas sexuais e a diversidade das formas de trabalho (em espaços públicos,
residências particulares, estabelecimentos comerciais) são fortemente condicionadas pelo
É importante realizarmos uma problematização sobre o significado do termo
puta/prostituta para além de uma referência concreta a profissionais do sexo ou
trabalhadoras sexuais. Em uma perspectiva patriarcal, assentada em um padrão conjugal
monogâmico para o feminino, o termo alude também a mulheres que vivem sua
sexualidade com múltiplos parceiros e/ou dissociada de vínculos amorosos substantivos.
O presente texto baseia-se, especialmente, em Rodrigues, A. (2009).
Para esta classificação e cotejamento, ver Rodrigues, A. (1998).
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Representações sociais e processos psíquicos
As relações afetivo-sexuais comercializadas são discriminadas socialmente e
os/as profissionais do sexo considerados uma categoria marginal. A condenação social
tende a recair sobre quem vende serviços sexuais, predominantemente as mulheres, e
não sobre quem os compra, basicamente os homens. Constatam-se, assim, dois
movimentos básicos: um primeiro, de tentativa de desconhecer o fenômeno, de
invisibilizá-lo, que se expressa na não regulamentação da compra e venda de serviços
sexuais e, mesmo, na falta de discussão sobre a questão; e um segundo, de realização
de julgamento moral, que se traduz no aviltamento dessas relações e na depreciação
O julgamento moral que resulta no menosprezo e hostilidade aos profissionais do
sexo pode ser compreendido como uma expressão de mecanismos de projeção. Os
sujeitos projetam sua parte tida como suja e repulsiva nesses trabalhadores, liberando-se
do confronto com seus próprios aspectos conflitantes. Quanto mais rígidos os sujeitos,
mais farão uso de mecanismos de defesa de negação, recusa, cisão, projeção.3 Nessa
medida, tais profissionais constituem um depositário do que é representado como pior da
condição humana, sendo transformados em um grupo social achincalhado,
particularmente pelos sujeitos com rígidos padrões de sexualidade, religiosidade e visão
Por outro lado, à medida que os/as profissionais do sexo se identificam com
essas projeções acerca de sua situação e de si próprios/as, ficam destituídos
internamente e tornam-se mais vulneráveis aos conflitos e aos sofrimentos psíquicos.
A discussão sobre as motivações psíquicas para a compra e a venda de serviços
sexuais constitui um campo de investigação sendo importante considerar que o
pagamento/recebimento pela prestação do serviço sexual alude, de pronto, à “liberação”
de uma relação de compromisso e de construção de um vínculo entre as partes. Esta
dinâmica tende a favorecer vivências fragmentadas e cindidas, tanto em termos de
sexualidade e afetividade, quanto de corpo e psiquismo. Se, por um lado, este contexto
possibilita reunir histórias comuns aos sujeitos envolvidos, por outro, elas não se
Para uma discussão sobre estes mecanismo ver Klein, M. (1946, 1936).
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sobrepõem à singularidade e subjetividade de cada sujeito, a partir de sua dimensão
constitucional e das relações objetais vivenciadas ao longo de sua história de vida.
Construção de sujeitos políticos
Com vistas ao enfrentamento da precariedade material e simbólica, os/as
profissionais do sexo estão se construindo como sujeitos políticos na contemporaneidade,
buscando refazer suas identidades e abrir novas formas de inserção social.
As organizações de trabalhadoras sexuais situam-se no campo da
regulamentação. A prostituição é legalizada na Suécia, Holanda, Alemanha, Dinamarca e
Noruega, com formatos diferenciados, e é considerada crime nos Estados Unidos da
América. Entre estas duas situações, concentram-se a maioria dos países, os quais não
criminalizam nem regulamentam este trabalho.
No Brasil, existe um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados desde
2003 visando à legalização e regulamentação da atividade de “Profissional do Sexo”, o
qual prevê o pagamento “pela prestação de serviços de natureza sexual”. O projeto tem o
apoio da Rede Brasileira de Prostitutas, instância criada no I Encontro Nacional de
Prostitutas, realizado em 1987, na cidade do Rio de Janeiro. 4
Desde 1989, a Rede realiza parcerias com o Programa Nacional de Doenças
Sexualmente Transmissíveis/Aids do Ministério da Saúde e, em 2002, conseguiu a
inclusão da atividade de profissional do sexo na Classificação Brasileira de Ocupações do
As reivindicações da categoria integram a Carta de Princípios divulgada no IV
Encontro Nacional de Prostitutas, realizado em fins de 2008, também no Rio de Janeiro:
defesa da prostituição como profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos;
repúdio à criação e existência de zonas de confinamento, ao controle sanitário, à
vitimização, à exploração, à discriminação e ao preconceito; e defesa do trabalho sexual
Algumas considerações finais
A Rede Brasileira de Prostitutas integra a Red de Trabajadoras Sexuales de Latinoamerica y el Caribe , criada em 1997.
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Visando concluir estas reflexões queremos problematizar a possibilidade de se
traçar paralelos entre uma ação política deste tipo e o trabalho psicanalítico. Ambos
propõem a superação de processos de vitimização em detrimento de processos de
responsabilização. Em uma perspectiva ética, ação política e trabalho psicanalítico podem
favorecer o desvelamento e a ruptura com processos de submissão e heteronomia; e,
paralelamente, propiciar condições para a construção de sujeitos autônomos com
reconhecimento de suas possibilidades de escolha em contextos de realidade.
A par dessas convergências, podemos elencar algumas distinções substantivas.
A ação política visando à mudança social está referida a coletivos humanos; quanto mais
conscientes e organizados maior a sua força e a possibilidade de mudar as relações
opressoras. Já o trabalho psicanalítico é um processo artesanal, realizado por uma dupla
(analista – analisando) e referido ao desenvolvimento psíquico do analisando, que tem
responsabilidade exclusiva sobre os rumos de sua vida. Enquanto a ação política refere-
se a “sonhos de olhos abertos” e se sustenta na vontade e no projeto político, o trabalho
psicanalítico lida com “sonhos de olhos fechados”, entre outros materiais que possibilitam
o desvelamento de ganhos e perdas inconscientes nas práticas cotidianas e nas
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